Olha o trem...
Mais um dia estava começando. Uma jornada de trabalho findando. Estava cansado. A noite fora longa.
Maio é um mês que o frio e a umidade da região já começam a formar denso nevoeiro. Não gosto de nevoeiro. Encobre tudo ao redor. O céu, as estrelas, a lua e até os pensamentos.
O cérebro parece que esvazia, o barulho da máquina vai tomando conta e nos hipnotizando. Aí complica. Não dá para dormir.
Como deixar 40 vagões carregadinhos de cimento, madeira, cerâmica, mais os tanques de combustível ser guiado por um quase moribundo? Era assim que me sentia quando o sono chegava e não podia deixar que ele se instalasse.
Sempre fui um bom maquinista. Atento, pulso firme, responsável, cordial com os colegas na companhia. Afinal, era um bom emprego. Federal, com regalias, boa aposentadoria. E ela já se aproximava. Contava os meses que faltavam para chegar e ser a companheira de lazer, nas pescarias, nas viagens sem preocupações para o resto da vida.
Estes pensamentos até me deixava mais esperto, apesar da sonolência que permanecia.
Já estava próximo da penúltima estação. Mais um cruzamento e já estaria lá.
No tempo dos passageiros ali pegava muitos estudantes que iam estudar na cidade. Levantavam muito cedo os coitadinhos. Tinha até criança de seus 13 anos que iam até a estação em Pelotas e depois caminhavam até o colégio em diferentes pontos da cidade.
Atualmente, o que ocorria, de vez em quando, embora fosse proibido, era dar uma carona para alguém conhecido que se empoleirava junto na cabine. Hoje, para tirar o sono, bem podia ter sido um desses dias.
O trem estava se aproximando da casa de pedra junto aos trilhos, bem no cruzamento. Ali estava ela.
O apito! Devia ter apitado antes. Não podia vacilar. Está certo, era cedo. Não havia movimento no cruzamento esta hora, mas o sinal é obrigatório.
As árvores nas proximidades dos trilhos atrapalham a visão dos que passam naquele ponto.
Gostava de cumprir à risca as regras de segurança. Devia apitar bem antes para sinalizar que se aproximava. Na próxima jornada tomaria mais cuidado. Iria levar mais café. Um rádio de pilha, embora gostasse do papo interior desenvolvido na cadência do trem. Era como se a máquina colocasse seus pensamentos no rumo certo. Nos trilhos, como se costuma falar.
Desta vez, porém foi diferente. Os pensamentos saíram dos trilhos.
Só foi possível perceber quando arrastava metros à frente, o carro que não ouviu o apito do trem e atravessou os trilhos...
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